sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Pivete Neguinho, a origem






leitora eventual e bissexta do blog perguntou sobre o Pivete Neguinho. Eis.

Nosso professor de Educação Física do colégio em Londrina misturava as classes. Só os meninos do Científico/Clássico, o antigo segundo grau, não queriam se misturar com os meninos de outras séries.
Três caras que os meninos admiravam, o Celso, um que não me lembro o nome e o Zé Carlos, Carlão. Este um negro magro de porte elegante, sempre de cabeça erguida e que parecia com o ator Clarence Williams lll do antigo seriado Mod Squad, que eu gostava.
Em Londrina eu só via os negros, jogadores de futebol, que vinham de outras cidades usando o corte black power. Ele usava. Era filho adotivo de um médico e uma professora do curso Fisk, americanos, que foram dar com os costados no Norte do Paraná. A mãe dele, brasileira, tinha sido empregada deles e quando ela faleceu eles o adotaram. O cara tinha boas notas, todos comentavam. O cara fazia jus. No colégio havia uma tarefa, frequentar por algumas horas/mês, a biblioteca, visita marcada na caderneta. Eu o via por lá. Só que enquanto na minha mesa era eu e meus livros na dele, além dos livros, duas, três garotas enfeitavam a "tarefa" do cara. E na saída o cara ainda dava conselhos:

"É isso aí neguinho, a gente tem que estudar !!".

Esse "a gente" eu só iria enterder mais tarde.

Eu e ele éramos os únicos negros do colégio, cuja entrada dependia de uma prova casca grossa. De 15 em 15 dias ele ia até o correio e saia de lá com uma caixa.
Na aula de Educação Física minha classe não jogava contra a dele. Mas fazia bom papel contra as outras classes. A providência divina tinha reunido cinco caras com repertório de jogadas interessantes na mesma classe. Beto no gol, Marcelo de fixo, Gerson e João Gilberto de alas e eu como pivô. Depois de massacrar outras classes, o professor foi nos testar contra os caras do segundo grau, contra a classe do cara. E seria uma peleja histórica. A coisa estava a nosso favor.
A bola ficou mais dentro da àrea que fora. Para achar um ângulo, tive que driblar o goleiro, ele veio, driblei-o também, mas sem ângulo, tive que fintar o goleiro novamente, o que deu tempo dele chegar e chutar bola e eu para o cercadinho da quadra e com o corpo sobre mim, sem me deixar levantar perguntou.

_ Pivete Neguinho, como é o nome da sua mãe ?
_ Benedita, eu. O nome de minha mãe saiu sufocado.
_ Pois a Dona Benedita te quer inteiro em casa à tarde. Mais uma dessa te quebro. Disse isso, sorriu e me ajudou a levantar.

_ Vai, vamos jogar !

Vale lembrar que ele não me chamava pelo nome. Era só Neguinho. Pivete Neguinho. Foi depois dos dribles contra ele, que passaram a não existir depois daquela ocasião.

_ Tu é um Pivete, Neguinho !

Quando nós, os mais novos chegávamos, ele e os outros dois já estavam sentados em carros em frente ao colégio, e cercados pelas meninas de todas as classes, chamava a atenção. O cara mandava bem e estava sempre bem acompanhado.
E se eu ficasse além do sinal, lá vinha ele como um irmão mais velho.

_ Neguinho sobe ! Senão a Dona Benedita vai saber que você está querendo matar as aulas !

Ele descobriu a banca do meu pai. Toda vez que ia ao correio passava por lá. E me mostrava o conteúdo das caixas que pegava no correio. Livros de Medicina, revistas, jornais americanos e discos muitos discos, que ele me mostrava as capas e perguntava.

_ E aí Pivete, conhece ?

Era uma profusão de nomes de artistas negros, grupos, alguns que eu nem tinha ouvido falar e outros que só mais tarde iria me dar conta.

Um dia me salvou de uma suspenção e falou meu nome pela primeira vez. Meu pai recebeu umas revistas plastificadas importadas. As plastificadas nacionais, por conta da censura, não mostravam os dois seios das modelos, nem pelos pubianos, nus frontais tampouco. Com uma técnica abri uma delas. Um delírio. Só que distraído e extasiado me esqueci do meu pai, que chegou de repente me fazendo jogar a revista na pasta do colégio. Primeira aula, Educação Física, mostro para um amigo a revista. Entusiasmado meu amigo comenta alto as fotos. Alvoroço. Vendo a confusão, Carlão e os outros dois se aproximam, quando vê a revista, manda:

_ Aí hein Pivete Neguinho, sabia que tu era dos bons !

Só que na confusão o professor apareceu, trancou o vestiário masculino e mandou chamar o diretor, o Sr Tarcísio, que chegou, folheou algumas páginas da revista e começou um discurso sobre, nossas mães, irmãs, tias, primas e avós, no que um de lá falou meio choroso:

_ Minha mãe não é assim não ! provocando risadas.

E quando o diretor perguntou de quem era a revista e eu já ia me apresentar, ele que estava ao meu lado me segurou e se apresentou.

_ O Sr. sabe que o pai do Pedrão aqui tem uma banca de jornal, eu pedi para que ele trouxesse essa para mim !

O diretor pediu que ao final da aula ele fosse falar com ele. O esperei na saída sentado nas escadarias. Ele chegou com a revista, sentou ao meu lado.

_ A Dona Benedita iria ficar mais brava que o "Seo" Pedro, e riu, tirando uns trocados do bolso.
_ Coloca no caixa do seu pai ! Pedrão, tu é um Pivete .

Ali sentados, conversando no começo daquela tarde.

_Voce parece o...... - eu.
_ ....o Clarence Williams lll, sei - ele.
-Eles te xingam muito por conta da sua cor ? - ele.
_ Xingam - eu.
_ Não deixa - ele.
_ Eles te xingam por conta do seu olho ?- ele.
_ Xingam - eu.
_ Não deixa ! - ele.
_ E quando você se interessar por uma garota, feche o olho ela vai pensar que você está piscando para ela. Vai dar certo.!

Nisso apareceu uma das amigas dele. A Norma.

_ Norma,Esse aqui é o Pedrão ! Meu irmão adotivo!

Fechei o olho.

_ Oi Pedrão ! Voces estão famosos no colégio hoje. - ela.
_ Culpa desse meu irmão adotivo aqui. Mas vou falar com o Papai Pedro e nossa Mamãe Benedita. Ele vai ficar de castigo. Vai ficar um mês sem assistir o programa da Tia Lucy (*).

Rimos. Me deu um tapa nas costas. E foi se despedindo.

_ Prá casa Pivete, a Dona Benedita te espera. E eu tenho certeza que você é melhor do que esses caras todos aí. Love and Peace, Brother !

E saiu acompanhado da Norma na tarde londrinense, grudando aquela imagem nos meus olhos infantis.
Tenho lembrado bastante dele e daquele "conselho", "a gente tem que estudar". Eu que há muito sei o significado desse " a gente". E penso na festa que ele não faria por onde ando agora.

Love and Peace !



(*)A Tia Lucy era uma apresentadora de um programa infantil na Tv Coroados de Londrina.

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