Até o fim do mundo
janeiro 20
As roupas costuradas com teflon em três camadas, não estão resolvendo mais. O calor é insuportável. Nenhuma sombra, nenhum sinal de conforto. Verão tórrido no mundo todo. Um eterno verão, desde que as tempestades solares, previstas pelos cientistas, se intensificaram. Nos últimos dias as sirenes não cessaram. Ambulâncias, carros de bombeiros, viaturas policiais, transformam tudo num zumbido só. As crianças gritam junto, estão indóceis. Todos estão irritados. O serviço de Saúde Pública não se cansa de recolher corpos nas ruas. Tropeça-se com eles a todo momento que se sai às ruas. Fora os que andam desesperados. As igrejas, os cultos estão cheios. Rezas, gritos, muito choro e pedidos de perdão. Os mais fanáticos preveem um Messias. Aproveitadores prometem reinos celestes. Muitos querem fugir da cidade, as estradas estão cheias. Ir para onde? Outros se conformaram e se preparam para o inevitável. Seo Dagoberto, meu vizinho de porta, pediu para a dona Miriam, do primeiro andar, beijos e noites juntos até o fim. Não há muitos lugares para se ir. Sem a camada de defesa da Terra, objetos caem do céu explodindo no chão a quase todo momento. Os abrigos subterrâneos são um paliativo. Construídos às pressas, quando o Governo Mundial se deu conta do atraso, servem para poucos, para os de sempre, os endinheirados, os comparsas dos Governos Periféricos. Estão lotados. Há brigas ferozes para se entrar neles. Quem tem dinheiro pode ainda conseguir uma vaga ou piratear uma senha de acesso e vendê-la como oficial. Este é o meu ganha pão da temporada. Já roubei carregamento de teflon. O Setor de Segurança já me descobriu.
É por isso que esses dois homens que subornaram meu porteiro alcoólotra, estão subindo atrás de mim. Um pelo elevador, outro pelas escadas. Apesar das transmissões estarem com estática, consegui ver pelo vídeo do interfone. Vou tentar chegar no apartamento da Renia, minha amiga do andar de baixo, com quem pensei em ter o mesmo procedimento do seo Dagoberto com dona Miriam, e que deixou uma cópia da chave, para que eu tivesse o trabalho inútil de cuidar de plantas e peixinhos, enquanto ela fugia para se reconciliar com a mãe. Ao menos dei um enterro digno aos peixes. Sei que não há saída. Nem tenho a pretensão de me reconciliar com ninguém. Minha família nem se lembra de mim. Tive casos fúteis e
amizades desabonadoras, vícios de toda ordem. Não me sinto em condições de pedir perdão. Vendo minha vaga no confessionário para interessados, se eles ainda estiverem vivos.
Ontem no pouco que consegui captar da transmissão do canal de filmes antigos, vi partes de um filme que lembrou minha adolescência. Sorvetes, encontros e risadas. A última nota que vi na internet dava como residência dela, o Quadrante Sul da cidade. Peguei pouca coisa na fuga do meu apartamento. Pirulas de vitaminas, chips de hologramas de disfarces, gps e um aparelho jurássico do século vinte, herança de algum parente, que nunca quis jogar fora, um walkman com algumas fitas-cassete pré gravadas. No apartamento de Renia deve ter algumas outras coisas. Não quero peso. Não faz sentido. E depois, assim que eu despistar esses dois vou tentar chegar por lá. Já que agora na palavra dos cientistas com confirmação das autoridades do Governo Central é oficial. Daqui cinco dias é o fim do mundo. E é o aniversário dela.
Um comentário:
Uau.
Dê noticias do sucesso de sua fuga.
Bj
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